O paradoxo do descendente intolerante
Nos últimos dias, venho refletindo muito sobre um tema que pra mim tem a ver com o verdadeiro significado do que realmente significa cidadania: o paradoxo do descendente intolerante
Algo mais profundo, mais incômodo e mais urgente: o preconceito de muitos descendentes de italianos com outros imigrantes.
Pois é, isso mesmo que você leu.
E a isso eu uso o termo “paradoxo do descendente intolerante” pois além de ser um paradoxo, é algo difícil de compreender.
Pessoas que carregam no sangue a história da imigração, gente que só está hoje vivendo na Europa, porque seus bisavós ou trisavós foram recebidos no Brasil, na Argentina, no Uruguai, Estados Unidos e tantos outros lugares do mundo.
Que sofreram preconceito, que foram marginalizados e que se estivessem vivos teriam vergonha das sementes que deixaram no mundo.
Sementes estas que se acham no direito de julgar, criticar ou até mesmo discriminar quem está tentando exatamente a mesma coisa que o seus antepassados.
E é aqui que eu preciso fazer um alerta.
A história que poucos lembram

É impressionante como a memória coletiva pode ser seletiva.
A grande maioria dos italianos que chegou ao Brasil entre o fim do século XIX e o começo do século XX veio fugindo da miséria.
Eram, na sua maior parte, agricultores, pessoas humildes que deixaram tudo para trás com a esperança de uma vida melhor.
E quando chegaram no Brasil foram recebidos com tapete vermelho? Claro que não!
Apelidos pejorativos como “carcamano“, “porco cane” ou “farabutto” eram comuns.
Sofriam discriminação por não falarem português direito, por viverem em cortiços, por ocuparem os empregos que os brasileiros não queriam.
Foram explorados em fazendas, fábricas, plantações de café.
Eram olhados com desconfiança e tratados como inferiores.
E agora, mais de 100 anos depois, os netos, bisnetos e trisnetos dessas pessoas olham torto para um haitiano que chega ao Brasil.
Ou fazem piada com um senegalês que tenta reconstruir a vida na itália.
Ou ainda se incomodam com um sírio, ucraniano ou palestino que veio fugindo da morte e da violência.
Que loucura é essa?
Um Texto Para Ilustrar Tudo Isso

Veja a carta que um migrante italiano escreveu para sua família sobre as condições da travessia, no ano de 1876:
“Sono le otto del giorno dopo l’imbarco i capi tavola sono chiamati a prendere le razioni di burro e di pane da distribuirsi agli altri durante la settimana; orrore… cominciano le disillusioni… il pane che ci viene distribuito farebbe rabbrividire perfino i cani; esso è fatto di crusca, segale, pepe, seme di lino e mille e mille altre porcherie. … La sera … ci hanno dato il the. Figuratevi un poco d’acqua sudicia e senza zucchero; nessuno di noi l’ha potuto accostare alla bocca …si guasta il distillatore di bordo … per dei giorni non beviamo che acqua veramente marcia e piena di vermi che per buona sorte (dico per buona sorte perché non al certo per precauzione) trovatasi in diverse botti che servivano come per zavorra nel bastimento… un macchinista russo che trovasi a bordo tenta e riesce di accomodare la macchina”
São oito horas do dia seguinte ao embarque e as pessoas que estão nas pontas das mesas são chamados para pegar as rações de manteiga e pão para distribuir aos demais durante a semana; que horror… começam as desilusões… o pão que nos é distribuído faria até os cães estremecerem; ele é feito de farelo, centeio, pimenta, linhaça e mil e mil outras porcarias. … À noite… nos deram chá. Imaginem um pouco de água suja e sem açúcar; nenhum de nós conseguiu levar aquilo à boca… O destilador do navio estragou… por vários dias não bebemos nada além de uma água verdadeiramente podre e cheia de vermes, que por sorte (digo por sorte, porque certamente não foi por precaução) foi encontrada em vários barris que serviam de lastro no navio… Um maquinista russo que estava a bordo tenta e consegue consertar a máquina.”
A porta que se fecha depois que você entra

Há um fenômeno perverso e infelizmente comum entre alguns imigrantes e descendentes: depois que conseguem estabelecer-se, passam a agir como se fossem “donos do lugar“.
Como se o direito de migrar se aplicasse apenas à sua própria história.
É como se dissessem: “Eu posso, você não”.
E isso me revolta profundamente.
Porque é uma forma de hipocrisia fingida de orgulho.
Uma maneira de reescrever a própria história com outra roupagem, apagando a luta e a dor daqueles que nos permitiram chegar até aqui.
Fechar a porta depois que você entra é uma das formas mais tristes de egoísmo.
A cidadania italiana não te faz melhor do que ninguém
Essa é outra ilusão perigosa que precisa ser combatida.
A cidadania italiana é um direito.
Um reconhecimento de pertencimento a uma história, a um povo, a uma cultura.
Mas ela não é uma medalha de mérito e nem um troféu de superioridade e, com certeza, não é autorização para ser racista ou xenófobo.
São vinte anos trabalhando com cidadania todos os dias, vendo muita gente ostentando a cidadania como um símbolo de status.
Como se um passaporte europeu tornasse automaticamente essas pessoas mais importante, mais civilizadas, mais “evoluídas” do que outras pessoas.
Repito: isso é puro racismo.
Ser descendente de italianos não te faz melhor do que um imigrante sírio, afegão, boliviano, venezuelano ou haitiano.
Aliás, se você realmente entende o que significa de fato ser descendente de italianos, você deveria ser o primeiro a estender a mão para quem está tentando recomeçar.
O silêncio é cumplicidade
Outro ponto que precisa ser dito: quando você vê um comentário preconceituoso e fica calado, você está compactuando.
Quando você ri de uma piada racista, mesmo achando “errado”, você está reforçando esse comportamento maldito.
Quando você vê alguém tratar mal um imigrante e não faz nada, você está validando aquela ação.
E eu sei que esse artigo vai incomodar muitos.
Já comecei a receber as primeiras mensagens depois que eu fiz um vídeo no Youtube sobre esse tema.
Gente dizendo: “Ah, mas eu não sou racista” ou “é um exagero comparar a migração dos nossos antenatos com a migração atual“.
Se a sua reação é essa, olhe com mais cuidado.
A gente precisa aprender a escutar o desconforto.
A reconhecer os nossos preconceitos.
A dar o nome às coisas que elas realmente têm.
A entender que privilégio também é herança.
E que a nossa responsabilidade é muito maior do que parece.
O que significa ser imigrante em 2025

Historicamente, emigrar nunca foi fácil.
Em 2025, continua sendo um ato de coragem e, muitas vezes, de puro desespero!
Quem chega a outro país sem falar a língua, sem conhecer a cultura, sem ter garantias de emprego ou estabilidade, está se colocando numa posição de extrema vulnerabilidade.
É uma escolha difícil, muitas vezes forçada por guerras, fome, perseguições, ou simplesmente por falta de perspectivas.
E nós, descendentes de quem já passou por tudo isso, não temos o direito de virar o rosto.
Honrar de Verdade os nossos antepassados é não repetir o que eles sofreram
Existe uma cidadania que a gente herda.
E outra que a gente constrói.
A primeira vem com documentos, traduzidos e apostilados.
A segunda, vem com postura, com ações.
E, pra mim, é essa segunda que realmente nos define como cidadãos.
Ser cidadão de verdade é ser consciente.
É olhar para o outro e reconhecer ali um reflexo do nosso próprio passado.
É escolher ser uma ponte, não um muro.
É saber que, no fim das contas, todo mundo tá tentando apenas viver com dignidade.
Honrar nossos bisavós e trisavós não é só fazer um processo de reconhecimento.
É carregar os valores que eles lutaram tanto pra manter: coragem, resiliência, humildade.
E principalmente: humanidade.
Tá Fabio, O Que Eu Faço Com Tudo Isso?
A resposta é simples e difícil ao mesmo tempo: comece por você.
Reveja seus preconceitos.
Repare nas suas falas.
Reflita antes de compartilhar piadas ou memes.
Bloqueie perfis de pessoas que propagam preconceito.
Corrija amigos e familiares quando ouvir algo racista ou xenofóbico.
E, acima de tudo, seja coerente.
Se você é descendente de imigrante, não seja opressor.
Se você teve a chance de conquistar uma vida melhor, use isso para abrir portas, não para fechá-las.
E se você acredita que o mundo pode ser mais justo, então não fique calado.
Vídeo
Este texto foi a base para um vídeo que eu publiquei lá no nosso canal e te convido para assistir:
Conclusão
Como eu sempre disse, a cidadania italiana é muito mais do que um pedaço de papel.
A nossa saga está em manter viva a consciência, a ética, o respeito e honrar verdadeiramente quem veio antes de nós.
Nos próximos meses, meu trabalho vai continuar se expandindo.
Não apenas com orientações sobre cidadania italiana, mas também com debates como esse, sobre cultura, identidade e o nosso papel no mundo.
Obrigado por continuar aqui comigo.
E pra você que vai continuar aqui comigo, também.
Porque o que estamos construindo vai muito além da Itália ou de um pedaço de papel.
É sobre quem somos e sobre quem escolhemos ser.
Un abbraccio,
Texto perfeito, o mundo aparentemente não aprende com erros do passado e parece que o cerco fecha cada vez mais. Quem bate nunca se lembra e quem sofre não esquece.
Ciao, Fabio!!
Adorei o texto!! Parabéns!!
Durante os anos que vivi na Itália, nunca experimentei preconceito por parte dos italianos, mas (pasme!), sim, de alguns brasileiros! Foi em dois momentos: primeiro durante meu processo de reconhecimento da cidadania, quando os citados brasileiros já eram cidadãos italianos, e, depois, quando eu ainda estava me adaptando à vida na Itália. Eles me olhavam como se eu fosse inferior por desconhecer muita coisa e até tentaram tirar vantagem de mim.
Essa experiência me fez ter a mesma sensação de incredulidade que vc descreve no texto, de tão absurda e incoerente que é esse tipo de comportamento.
Un forte abbraccio!!
Fala meu querido, eu também passei por isso, brasileiros sendo preconceituosos comigo por querer ser “igual eles”, complicado, né.
Obrigado pelo seu relato, outro forte abbraccio per te!